Padre Alfredo
sempre foi meu confessor e no momento da confissão sabia tudo que se passava em
minha vida, todos os meus sonhos, todas minhas angústias, meus medos, dúvidas e
principalmente meus pecados, entretanto tinha um pecado que nunca confessei ao
santo padre, nem podia era um segredo entre mim e Deus; mas, antes de contar a
vocês permita-me voltar um pouquinho no tempo.
A Vinda do padre Alfredo para o Brasil...
Em 1938, a Alemanha
Nazista anexa seu território a Áustria essa união entre as duas nações era um
sonho de Hitler, austríaco de nascimento assim como padre Alfredo, contudo essa
ligação da Alemanha com a Áustria trouxe graves problemas para padre Alfredo quando
ele chegou ao Brasil, já que as autoridades brasileiras achavam que ele poderia
ser um agente nazista infiltrado em terras brasileiras. Policiais saíram de
Salvador para prendê-lo em Jacobina, e só não foi preso porque José Marcelino
um empresário muito influente na cidade peitou a polícia e não deixou que fosse
preso, assim se desfez o mal entendido. Padre Alfredo na verdade era um agente
infiltrado de Deus em terras brasileiras, isso sim...
Um homem a frente de seu tempo...
Ainda em 1938,
o Abade Othamar, amigo de padre Alfredo, o definia como um homem “cheio de
ideias”. Conta ele que naquele tempo os padres eram obrigados a celebrar a
missa de costas para o povo e de frente para o altar e toda celebração era em
latim, mas o recém-ordenado padre questionava o jeito secular de os padres
celebrarem a santa missa de costas para o povo e, como forma de “protesto” ele
celebrou a missa de frente para o povo. Anos depois, já no Gonçalo e em toda região,
isso virou uma prática normal para ele sempre celebrando a santa missa de frete
para o povo, embora toda missa fosse em latim, ele treinou suas professoras paroquiais para fazer a
tradução simultânea do latim para o português, uma revolução para a época.
O Concílio do Vaticano II...
Até 1962
era imposição da Igreja Católica de que as missas fossem celebradas com os
padres de costas para o povo e de frente para o altar, mas em 1962 o Papa João
XXIII convidou os bispos de todo o mundo para fazer algumas mudanças nas regras
da Igreja Católica, esse encontro foi chamado de Concílio do Vaticano II e
durou de 1962 a 1965.
Dentre as
mudanças estava a autorização para os padres celebrarem a missa de frente para
o povo e na língua do país da celebração, pois antes só era permitida a
celebração da missa em latim.
O lendário Frei Damião...
Certa vez, frei
Damião conhecido frei capuchinho (que mais tarde recebeu o título de Servo de
Deus, que é o primeiro passo para o processo de canonização) sabendo da ideia
de padre Alfredo em fazer a tradução simultânea do Latim para o português na
celebração da missa, pegou um trem de Recife para Jacobina, passou a noite
copiando a tradução da missa provavelmente para empregar em suas igrejas em
Recife.
Um dia marcante...
Padre
Alfredo foi ordenado padre em julho de 1933, coincidentemente no mesmo mês e
ano em que nasci. Naquele tempo o
Gonçalo não tinha escola, apenas um professor particular chamado Pedro Santana (com
quem fiz o pré-primário) que era contratado pelos pais para ensinar às crianças
as primeiras letras e números, ou aprender a assinar o nome, o que era
suficiente para os pais tirarem as crianças das aulas.
Um dia
quando eu tinha aproximadamente 10 anos de idade, e com minha irmã caçula Lúcia
“enganchada” em meus quadris vi o padre chegando montado em seu burro (companheiro
de longas viagens) indo para um salão que tinha alugado do Sr. João Ferreira para
montar a primeira escola do Gonçalo. Naquela oportunidade lembro que ele estava
acompanhado da primeira e excelente professora Ana Brandão que veio de Sr. do
Bomfim. Tudo para mim era novidade, aquelas carteiras próprias pra estudantes,
quadro negro (coisas que ninguém nunca tinha visto pelas bandas de cá).
Um educador visionário por excelência...
O padre Alfredo
tinha verdadeira paixão em ensinar os mais pobres, principalmente àqueles que
não teriam oportunidades de ter um ensino gratuito e de qualidade, aliás primeiro
pensava em educar as crianças antes mesmo de evangelizar, e nesse quesito tinha
uma frase célebre: “como posso
evangelizar sem saber se os que me ouvem absorviam plenamente o ensinamento e
por isso o aceitavam”. A escritora Suzane Alice (in memorian) descreve em
seu livro intitulado “Alfredo de Deus, Alfredo dos Pobres” que em seus 20 anos
de sacerdócio em Jacobina e região, desde sua chegada em 1938, percorreu
montado em seu burro, 20.000 léguas (ou 120.000 km ou 60 vezes a distancia
entre Jacobina e São Paulo) ensinando, evangelizando, construindo escolas,
fazendo batizados e casamentos, medicando a população, isso tudo documentado em
seus relatórios diários que preenchia para prestar contas a igreja. Depois, em
1961, recebeu de presente um jipe dos católicos da Áustria para ajudar na
locomoção, se na época em que andava no lombo de um burro não tinha distância
para ele, imagina agora de jipe...
Padre, Professor ou Médico...
Certa vez ele me confidenciou que sua família queria que ele estudasse
medicina, até começou a estudar, mas na verdade ele queria ser mesmo era “médico
de almas”. Outra paixão dele, além de evangelizar e cuidar da educação dos mais
carentes era “clinicar”, em todas as suas viagens primeiro em seu burro e
depois nos automóveis, ele sempre levava uma mala cheia de remédios para doar e
ensinar os pobres como usar os medicamentos doados. Presenciei inúmeras vezes
em que ao terminar a celebração da missa ele se deslocava para um quarto (cedido
na pensão de minha saudosa mãe miúda) onde atendia todos os doentes que
precisavam de medicamentos, esse ritual sempre acontecia após as missas em
qualquer lugar onde o padre estivesse hospedado (na casa de Pedrinho Feitosa,
Zé Inocêncio, José Ferreira mais conhecido como Tote, etc...). Nesse tempo uma
consulta com médico era coisas das mais difíceis da época, tanto pelo valor da
consulta, estradas ruins, quanto pela distância que separa o Gonçalo de
Jacobina cerca de 40 km. Lembro um dia que a esposa de Baio de Justiniano(Laura)
estava grávida de gêmeos entrou em trabalho de parto e dessa forma a parteira
da época mãe menininha não conseguia fazer o parto, mandei um bilhete para o
padre Alfredo (em Jacobina) pedindo que conseguisse um médico urgente. Partiu Baio
de cavalo até o Esconso e lá pegou um carro até jacobina para entregar o
bilhete a padre Alfredo... Ele não estava na cidade, mas sempre deixava uma
ordem que se chegasse qualquer pedido das professoras das escolas dele era pra
ser atendido sem questionar, assim foi feito, a secretaria da casa paroquial,
mandou o Dr. Flori urgente para o Gonçalo, padre Alfredo ao tomar conhecimento do
meu pedido sem saber que já tinham enviado um médico mandou outro medico Dr.
Raimundo, assim a paciente foi atendida por dois médicos. É bom lembrar que
todas as despesas com médicos eram custeadas pelo padre.
Os três grãos de café e o segredo revelado...
Convivi com
ele durante muitos anos e uma coisa chamava a atenção de todos, ele nunca
tomava café, nunca... Era flagrado sempre tomando leite, e todos achavam que
era uma prática para manter a saúde em dia, degustando uma bebida mais
saudável. Durante toda minha vida eu pensei que era isso, mas o segredo foi
revelado pela escritora e amiga Suzana em seu livro publicado em 2015.
“ao desembarcar no Brasil, ele
encontrou três grãos de café no navio ou no porto, ele pegou esses grãos e
guardou... enviou dois para a família na Áustria e guardou um no bolso de seu
paletó” a verdade era que lá na Áustria nem ele nem a sua família podiam tomar
café, pois era uma bebida muito cara, apreciada pelas famílias mais abastadas
financeiramente e que apesar de ser uma bebida acessível a todos aqui no
Brasil, desde o mais humilde cidadão até os mais ricos, padre Alfredo se
recusava a tomar café no Brasil sabendo que sua família não podia desfrutar de
tal “privilégio” na Áustria.
As escolas paroquiais de padre Alfredo...
Naquele
tempo as escolas paroquiais só ofereciam até o quinto ano primário, depois de
concluído vinha uma banca examinadora de professores de Jacobina aplicar uma
espécie de “vestibular” para o aluno obter a aprovação do quinto ano, só assim
recebia o diploma de conclusão. Lembro-me da minha vez em que fui me submeter a
essa banca examinadora. Do Gonçalo apenas eu estava apta a fazer, então tive
que ir até Jacobina me juntar a mais dois alunos (vindos do Caém) para o exame.
Primeiro fazíamos as provas escritas na escola e depois tinha a prova oral, na
frente dos professores e pais e de pessoas que assistiam, os professore faziam
perguntas de português (professora Felicidade) Matemática (tinha questões de Câmbio,
frações, etc.) e Religião com padre Alfredo.
Como obtive
sucesso padre Alfredo me mandou para o povoado de Alagadiço, assim começou
minha história (com 16 anos) como professora paroquial.
Meus Alunos...
O máximo
que um aluno humilde do Gonçalo e Região conseguiam chegar era a conclusão do
quinto ano, pois o próximo passo seria fazer o exame de admissão, mas caso
aprovado, precisava de recursos financeiros para estudar fora, e quase nenhum
tinha esses recursos, os que vinham de famílias mais abastadas mandavam seus
filhos para Jacobina, Senhor do Bomfim, Jequitibá e Salvador.
A ideia...
Em Jequitibá existia um mosteiro com excelente estrutura, um sonho, mas a sua estadia era muito cara para os padrões da época... Então padre Alfredo me conferiu a missão de selecionar alguns alunos para mandar pra lá, que tivesse vocação para ser padre, além da vocação, teria quer ser bons alunos, ter comportamento exemplar e ser assíduos nas aulas...
Eis o pecado...
Vi nesse
pedido de Padre Alfredo a oportunidade de mandar meus bons alunos para
desfrutar uma excelente educação e o melhor sem custos para ele e suas famílias
(até o enxoval era doado pelo padre). Visitava os pais dos alunos e dizia:
quero mandar seu filho para estudar em Jequitibá com todos os custos pagos pela
igreja. Os pais ficavam radiantes de felicidades, mas diziam: “professora infelizmente
meu filho não tem vocação nenhuma para ser padre”. Eu dizia... Eu sei disso,
ele também sabe, nós sabemos, mas é uma oportunidade das melhores para
preparamos ele para a vida, a educação é talvez a única herança que nós pais
pobres podemos propiciar para nossos filhos.
Logo vinha a segunda pergunta: E depois da formatura, eles têm que ir
para o seminário, o que vamos fazer? Eu respondia “deixa comigo”, eu assumo a
responsabilidade de falar com o padre... E assim depois da formatura padre
Alfredo me perguntava fulano já acabou os estudos, quando se apresenta no
seminário? Eu dizia: padre Alfredo, ele não tem vocação para essa santa missão,
me enganei, desde criança via nele um padre, mas infelizmente não vai ser... Mas
aí eles já estavam formados e com uma excelente bagagem para enfrentar os
desafios da vida...
Às vezes me
questionava se estava fazendo a coisa certa... Trair a confiança de um santo
homem que muito me ajudou e sempre confiou a mim a execução de vários de seus
projetos, sei que também pequei contra minha igreja já que a verba era destinada
aos alunos com vocação para o celibato, apenas para eles.
Mas entendia que o pobre estudante da região tinha poucas oportunidades de
seguir estudando, haja vista que depois de concluído o quinto ano muitos
voltavam para os trabalhos na roça em suas terras áridas e castigadas pelas
secas frequentes. Alguns eram “obrigados” a tentar a sorte em São Paulo, mas
chegando lá a maioria abandonavam os estudos... Via no rostinho de cada criança
um potencial enorme que às vezes só os professores percebem, via também joias
preciosas que precisariam ser lapidadas, em outros lugares, com novos
professores...
À noite,
quando colocava minha cabeça no travesseiro lembrava que nunca foi fácil para eu
fazer tais escolhas, sempre vivi essa dualidade, entretanto nunca tive dúvida na
hora de fazer minha escolha: entre trair a igreja e ajudar meus alunos, sempre
escolhia meus alunos, entre decepcionar Padre Alfredo e dar uma esperança de
sucesso aos alunos, sempre fiquei com meus alunos, porque quando se nasce com a
vocação para ser professora alguns pecados são permitidos...